As
primeiras formas de linguagem. Éh?
Novo
livro sustenta a polêmica teoria de que a linguagem humana teve
origem nos gestos e não na fala.
por
Jerônimo
Teixeira
Fim
de noite. Com aquela generosidade que só o chope concede, você
anuncia: “Hoje sou eu que pago”. O garçom está entregando um
prato de fritas no outro lado do salão. Você acena para ele e em
seguida sinaliza com a mão no ar, como quem escreve com uma caneta
imaginária. O garçom responde com um aceno de cabeça e o polegar
para cima e segue rumo ao caixa. Estamos todos entendidos: você
acaba de pedir a conta.
É
um exemplo comum de como os gestos podem substituir a fala. Na
história do gênero humano, porém, pode ter acontecido o
contrário. No recém lançado From Hand to Mouth – the Origins of
Language (Da Mão para Boca – As Origens da Linguagem, inédito no
Brasil), Michael C. Corballis, professor de psicologia e ciências
cognitivas da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, afirma que o
ser humano começou a falar com as mãos.
Se
sua hipótese está correta – e você vai ver a seguir que alguns
cientistas já se mostram céticos a respeito –, nossos
antepassados brucutus se faziam entender por meio de um misto de
gestos e grunhidos e só muito gradualmente desenvolveram uma fala
articulada. “Evidências
que apontam para a idéia de que a linguagem originou-se nos gestos
estão se acumulando recentemente”, afirma Corballis.
Tais
evidências vêm das mais diversas áreas, como a lingüística, a
biologia molecular, a primatologia e a neurociência. Em cada um
desses campos de estudo, há um vespeiro teórico armado para o
pesquisador cutucar. A polêmica começa pela própria natureza da
linguagem. Para muitos lingüistas – especialmente aqueles
influenciados pela obra seminal do norte-americano Noam Chomsky –,
a linguagem é uma propriedade exclusiva e inata do ser humano, e
será inútil tentar qualquer analogia com as formas de comunicação
de outras espécies.
O
livro de Corballis insere-se no esforço mais ou menos recente de
estudar a linguagem à luz da biologia. “Nos dias de hoje, é
difícil ignorar a teoria da evolução. Isso significa que
lingüistas e filósofos estão sendo obrigados a prestar mais
atenção à ciência”, diz o autor.
Isso
não significa que o teatro de Shakespeare ou os sonetos de Camões
encontram paralelo na dança das abelhas ou no canto da cotovia. A
linguagem é um salto evolucionário muito largo, e até hoje, que
se saiba, só o Homo sapiens não tropeçou nesse passo (cientistas
ainda discutem se o neandertal teria ou não um aparelho vocal que
permitisse fala articulada). Especialistas têm catalogado os gestos
e as vocalizações de outros primatas, mas os resultados são
relativamente pobres.
Uma
certa espécie de macaco tem gritos específicos, de acordo com o
predador potencial que esteja se aproximando. Há um para cobra,
outros para leopardo, falcão etc. Isso parece sugerir uma
propriedade lingüística: a capacidade de referir objetos. Nossa
habilidade referencial, no entanto, é bem mais sofisticada. Somente
o ser humano é capaz de referir objetos ausentes. O leitor que leu
a palavra “macaco” neste texto imediatamente soube do que se
tratava, ainda que não encontre nenhum por perto. Os macacos só
dão o berro de “leopardo” na presença do felino.
Os
animais não mostram aptidão para o que os especialistas chamam
teoria da mente – a capacidade de se colocar no lugar de outro. Um
chimpanzé consegue no máximo notar que alguém o está observando.
A complexidade dessas construções mentais exigiria a elaboração
de orações subordinadas. Coisa de que somente o ser humano é
capaz. Os animais simplesmente não conhecem gramática.
Nem
o mais avançado aluno peludo pode superar uma criança humana.
Estamos falando de Kanzi, um chimpanzé criado em cativeiro pela
pesquisadora Sue Savage-Rumbaugh, da Universidade do Estado da
Geórgia, em Atlanta, nos Estados Unidos. Com a ajuda de um teclado
especial, Kanzi aprendeu um vocabulário básico de 256 símbolos
que representam ações e objetos (substantivos e verbos). Ele
entende e produz “frases” novas, mas sempre no padrão de
objeto-ação. Uma declaração típica sua seria algo como
“esconder amendoim” ou “pegar banana”.
Sue
acredita que as habilidades comunicativas de Kanzi demonstram a
existência de uma gramática básica, constituída por umas poucas
regras simples. A ordem das palavras, por exemplo, parece seguir
sempre o modelo sujeito-verbo-objeto (o qual, vale lembrar, não é
comum a todas as línguas: em alemão e japonês, entre outros
idiomas, o verbo costuma aparecer no fim). Na opinião de Corballis,
Kanzi não ultrapassou o nível de uma protolinguagem. Esse termo
foi cunhado pelo lingüista Derek Bickerton, da Universidade do
Havaí, nos Estados Unidos, para designar formas de comunicação
que apresentam pelo menos uma sintaxe primitiva.
A
protolinguagem está alguns passos adiante dos gritos e gestos que
os chimpanzés apresentam no seu hábitat natural. Com seus poucos
símbolos, Kanzi é capaz de produzir afirmações originais,
criando combinações que não lhe foram ensinadas. Mas sua
gramática – se é que ela existe – é muito rudimentar.
Não
convém subestimar os macacos, no entanto. Foram eles que forneceram
a Corballis uma das evidências de que a origem gestual da linguagem
é plausível. Para que a linguagem seja compreendida, necessitamos
de mecanismos de mapeamento mental que nos permitam reconhecer
determinadas ações do nosso interlocutor como iguais às nossas.
Na fala, por exemplo, precisamos compreender que as palavras que
usamos são as mesmas do nosso interlocutor.
O
estudo das atividades cerebrais dos macacos mostrou indícios desse
mecanismo. Certos neurônios reagem do mesmo modo quando o macaco
agarra determinado objeto e quando vê um humano agarrar o objeto.
Ou seja, essas células nervosas respondem de forma igual à ação
e à percepção da ação. Por isso são conhecidas como
neurônios-espelho.
Esses
neurônios encontram-se em uma área frontal nos dois lados do
córtex cerebral dos macacos. No cérebro humano, são encontrados
apenas no lóbulo esquerdo, próximos à chamada área de Broca, que
está envolvida (embora não se saiba ainda em que extensão) na
produção de linguagem.
Corballis
nota que os neurônios-espelho dos macacos respondem a gestos, não
a estímulos auditivos – o que ele interpreta como uma evidência
da origem gestual da linguagem. Este é um ponto controverso da
tese. Resenhando From Hand to Mouth para a revista Nature, Michael
Tomasello, professor do Instituto Max Planck de Antropologia
Evolutiva, em Leipzig, na Alemanha, flagrou uma certa parcialidade
na argumentação de Corballis.
Ocorre
que, ao lado dos neurônios-espelho, os macacos talvez ainda tenham
o que se poderia chamar de neurônios-eco, que respondem do mesmo
modo à emissão e à percepção de estímulos vocais. Neurônios
desse tipo ainda não foram de fato encontrados. Mas Tomasello alega
que a razão disso é provavelmente muito simples: até agora,
nenhum cientista procurou por eles.
A
linguagem de sinais empregada pelos surdos fornece outro argumento
forte para Corballis. Por muito tempo, as linguagens de sinais
estiveram cercadas de preconceito. Em 1880, um congresso
internacional de educação de surdos realizado em Milão baniu o
uso de sinais na sala de aula.
Em
muitos países, a proibição durou quase um século, com
conseqüências desastrosas para a educação dos surdos. Estudos
lingüísticos mais recentes provaram que as linguagens de sinais
não são menos expressivas do que a fala. São sistemas de
comunicação complexos, dotados de uma sintaxe sofisticada e
capazes de elaborar os conceitos mais abstratos.
O
dado mais relevante é que a área de Broca parece desempenhar as
mesmas funções na linguagem falada e na linguagem de sinais. A
abordagem de Corballis privilegia a linguagem como uma função
especializada do cérebro, centrada no lóbulo esquerdo. Um dos
capítulos mais interessantes de seu livro é dedicado a explicar
por que o nosso cérebro é assimétrico ou lateralizado – isto é,
por que existem funções específicas para cada lóbulo cerebral
(linguagem no lado esquerdo; percepção espacial no direito).
“Corballis coloca muita ênfase na lateralização do cérebro, o
que não é um sinal de linguagem.
Até
mesmo as rãs, por exemplo, têm cérebros lateralizados que
controlam suas vocalizações”, ataca Philip Lieberman, professor
de ciências cognitivas e lingüísticas da Universidade de Brown,
Estados Unidos. Lieberman também contesta que a área de Broca seja
de fato o centro da linguagem. Estudos mais recentes demonstrariam
que a linguagem envolve muitas áreas do cérebro, algumas inclusive
abaixo do córtex, em centros nervosos responsáveis também por
funções motoras.
Lieberman
é um opositor categórico da hipótese de uma origem gestual da
linguagem. “Há afinidades claras entre as comunicações verbais
do ser humano e as de outras espécies”, argumenta. Ele é autor
de Eve Spoke – Human Language and Human Evolution (Eva Falou –
Linguagem e Evolução Humana, também inédito no Brasil), obra em
que a emergência da fala aparece sincronizada com o surgimento do
Homo sapiens na África, há cerca de 150 mil anos. Na visão de
Corballis, o surgimento da linguagem é ao mesmo tempo jogado
milhares de anos para frente e milhões para trás.
As
primeiras formas de linguagem ou protolinguagem – eminentemente
gestuais, mas já pontuadas pela vocalização – teriam aparecido
há cerca de 2 milhões de anos, talvez já com o Homo rudolfensis,
o primeiro membro do gênero humano. O pleno desenvolvimento da
linguagem falada, no entanto, só teria se dado há cerca de 50 mil
anos.
Em
seus primeiros 100 mil anos sobre a Terra, o homem ainda teria se
valido principalmente das mãos e das expressões faciais para
comunicar-se – com alguns grunhidos eventuais. Acredita-se que a
grande expansão do gênero humano da África para o resto do mundo
começou há 50 mil anos. Há evidências fósseis de migrações
anteriores, porém esses primeiros aventureiros parecem ter sumido
sem deixar descendentes. Há 40 mil anos teria acontecido uma
espécie de explosão evolutiva.
O
homem teria começado a fabricar utensílios sofisticados. Surgem
também mostras de pensamento simbólico – pinturas nas cavernas,
por exemplo. Corballis crê que esse progresso foi propiciado pela
fala. Uma vez que as mãos estavam livres das funções de
comunicação, puderam caprichar na manufatura de objetos.
A
fala permitiu, ainda, que os conhecimentos acumulados fossem
transmitidos a seus descendentes. A fala teria dado ao Homo sapiens
grandes vantagens tecnológicas sobre outros hominídeos, como os
neandertais que habitavam a Europa e foram extintos há 30 mil anos.
Não é à toa que hoje somos os únicos remanescentes do gênero
Homo.
No
livro de Corballis, a linguagem não é apresentada como o passo
final de uma tendência evolucionária, mas como uma invenção que
o homem foi aprimorando ao longo de sucessivas gerações, tal como
ocorreria bem mais tarde com a escrita. O autor está hoje
atualizando essa tese à luz de novas descobertas.
O
livro já estava escrito quando foi publicada uma pesquisa revelando
uma mutação em humanos, ocorrida nos últimos 100 mil anos. A
mudança atingiu um gene que atende pelo simpático nome de FOXP2 e
que está envolvido na nossa articulação vocal. Daria quase para
publicar uma errata no livro: onde se lia “invenção”, leia-se
“mutação”. “A mutação do FOXP2 certamente não foi o único
evento que nos legou a fala”, afirma Corballis. O desenvolvimento
do nosso aparelho vocal, por exemplo, foi resultado de uma evolução
de longo curso, e não de uma mutação única. Corballis acredita
que a mutação no FOXP2 apenas deu a vitória final à fala, que a
partir de então estabeleceu-se como meio de comunicação
dominante.
“A
linguagem em si é muito complexa para ter emergido somente nos
últimos 100 mil anos. Portanto, devem ter existido formas de
linguagem que não dependiam puramente da vocalização, e é
difícil pensar em outras modalidades além dos gestos manuais e
faciais”, afirma. Não seria exato, portanto, dizer que a
linguagem falada substituiu a gestual.
Ela
apenas se tornou predominante. Além disso, os gestos não
desapareceram por completo. Continuamos a gesticular enquanto
falamos – e o engraçado é que fazemos isso até no telefone,
apesar de nosso interlocutor não nos enxergar.
A
tese de Corballis é instigante, mas, como já se viu, controversa.
Seu livro cobre um espectro muito amplo de disciplinas científicas
e assim abre a guarda para receber críticas de todos os lados. Em
uma resenha no Journal of Linguistics da Universidade de Edimburgo,
na Escócia, James R. Hurford, especialista em evolução da
linguagem daquela instituição, criticou Corballis por dar muito
crédito às teorias de Merrit Ruhlen, lingüista da Universidade de
Stanford, nos Estados Unidos, que afirma ser possível reconstituir
palavras de nossa primeira língua falada com base nos idiomas
existentes hoje. Parece que Ruhlen não é levado muito a sério
pelos demais lingüistas. Tomasello aponta algumas imprecisões na
descrição que Corballis faz do repertório gestual dos chimpanzés.
E Lieberman, como se vê, ataca Corballis no seu próprio campo, a
neurociência.
“Há
várias afirmações de Corballis que eu acho demasiado pertinentes,
incluindo a sua ênfase na lateralização das funções do
cérebro”, afirma Terrence Deacon, professor de antropologia e
neurociência na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Por
outro lado, Deacon revela seu desapontamento com algumas lacunas de
From hand to mouth. Faltariam, por exemplo, considerações mais
detalhadas sobre a semiótica (estudo da significação) dos gestos.
Aliás, Deacon considera que as linguagens de sinais existentes hoje
não servem como modelo para especular que formas de comunicação
nossos antepassados remotos teriam.
O
curioso é que Corballis cita uma obra de Deacon, The Symbolic
Species (A Espécie Simbólica, ainda sem versão em português),
como inspiradora da teoria gestual. De fato, Deacon jamais se une a
Lieberman na crítica feroz a essa idéia.
Ele
acha plausível que hominídeos primitivos tenham usado gestos para
se comunicar. O problema é que, ao contrário do que Corballis
sugere, essa teoria não mata a charada. “A hipótese gestual nem
remotamente explica as origens da linguagem, por que ela evoluiu, ou
o que conduziu essa evolução. Ela simplesmente reconhece que o
gesto é uma das características da linguagem que precisam ser
consideradas”, diz Deacon.
Frases
A
linguagem é um salto evolucionário muito largo que até hoje só o
Homo sapiens conseguiu realizar. Outros primatas têm algumas
propriedades lingüísticas – todas muito menos sofisticadas do
que as do homem
Para
saber mais
Na
livraria
From
Hand to Mouth - The Orings of Language, Michael C. Corballis,
Princeton University Press, 2002
Eve
Spoke; Human Language and Human Evolution, Philip Lieberman, Norton,
1998
Human
Language and our Reptilian Brain, de Philip Lieberman, Harvard
University Press, 2000
The
Symbolic Species, Terrence Deacon, Norton, 1997